- Nº 1776 (2007/12/13)

Digitalização <em>versus</em> «ser digital»

Argumentos

Hoje, estando nós mais afastados das origens dos respectivos processos, pode ser entendido com mais clareza. Os objectivos que para as gentes das telecomunicações, para as gentes com a tarefa de buscar as soluções a aplicar na evolução das redes a seu cuidado, de planear o seu desenvolvimento, os objectivos envolvidos no processo de digitalização das telecomunicações eram de uma natureza diferente das questões que, mais tarde, quando da fase de massificação da Internet a partir da segunda metade dos anos 90, tiveram a ver com a necessidade do «ser digital», com o então sempre insistido imperativo: «torna-te digital». E entre um lado - do lado das telecomunicações - e o outro - o lado da Internet e, mais em geral, das tecnologias da informação -, e vice-versa, parecia mesmo existir um golfo de águas profundas e agitadas, um obstáculo não só inultrapassável, como bordejado por margens aparentemente antagónicas.
Com efeito, de cada um dos lados gerou-se um desdenhar do outro lado. Do lado das telecomunicações clamava-se - conservando-se nas rotinas de quem explora uma imensa infra-estrutura à volta do Mundo; à defesa, os seus agentes - que a Internet era uma brincadeira interessante, como que um jogo, um gadget, ou, no máximo, uma rede académica sem qualidade suficiente para se transformar num serviço universal - de facto, a Internet actual está baseada no princípio do «melhor esforço» (best effort) e não da garantia de uma determinada qualidade de serviço -, que, se a Internet existia, a eles operadores de telecomunicações devia agradecer - com efeito sem a utilização das infra-estruturas de telecomunicações, meios de acesso e de transporte, como iria a Internet fazer? Etc. Do lado da Internet clamavam - estes, cheios de juventude, ao ataque - serem eles os portadores do futuro - e, em boa medida, também em termos de telecomunicações, as suas bases tecnológicas vão estando a sê-lo -, clamavam, pois, que a Internet era indestrutível - operava sempre, mesmo com uns troços inoperacionais, o tráfego encontrava sempre meios alternativos para se escoar -, que o «velho» serviço telefónico e os seus arrogantes «donos» estavam em vias de dar «a alma ao criador», que estes, os operadores de telecomunicações é que eram os culpados de a Internet não ter melhor qualidade, pois tanto no acesso, como no transporte não disponibilizavam as necessárias capacidades de transmissão, que eram careiros e por isso a utilização da Internet não podia expandir-se ainda mais, que a «velha telefonia», sem emenda, as dinossáuricas telecomunicações, se recusavam a abrir a passagem ao «digital». Etc. Ambas as partes teriam as suas boas e evidentes razões, mas nenhuma das partes detinha, ou podia deter, a Razão, é claro. Sim, na verdade, o que é a Razão?
No entanto, as telecomunicações tinham acabado de digitalizar as suas infra-estruturas, incluindo a comutação telefónica, criando não só a «rede [telefónica] integrada digital» - RDI, como tinham iniciado a transformação dos acessos, a quem o requeresse, em acessos próprios da «rede integrada com integração de serviços» - RDIS ; tinham, em sobreposição, criado uma «rede de comutação de dados por pacotes», que empregava uma tecnologia semelhante à da Internet, que também emprega comutação por pacotes - uma tecnologia, a das redes de comutação dados por pacotes, que, por exemplo, estava, e está, a funcionar tão bem com os sistemas de certificação de cartões de débito e crédito, e com as caixas tipo «multibanco»; estavam, ainda, as telecomunicações, ou seja, quer, em geral, os acessos RDI à rede telefónica, quer os acessos RDIS, numa fase de crescente utilização (nunca muito maciça, mas crescente); estavam a fornecer a porta de entrada, desde logo para a utilização de faxes - enquanto se via praticamente morrer o serviço telex -, utilização de fax que cresceu exponencialmente, e que, de forma semelhante, acabou por cair com a seguinte ascensão do email - e depois a porta de entrada para os acessos à Internet. Além disso, as telecomunicações fizeram avançar, com o sucesso que se conhece, o telemóvel empregando a tecnologia digital GSM. Tanta modernidade! Que faltaria ainda, para deixarem de as pensarem como os tais dinossauros analógicos?
Faltava a estruturação das «coisas» na sua vera base… as telecomunicações ainda não tinham revirado - mas hão-de revirar - do paradigma «telefónico» para o «internético».

Francisco Silva